O Índice de Acessibilidade das Rendas
A habitação é o tema central da sociedade portuguesa nos dias de hoje. Os preços das casas atingem recordes e são destaque frequente nos meios de comunicação. No entanto, esta crise não se limita às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Afinal, é ainda possível arrendar um T1 sem partilhar casa?
Para responder à pergunta, desenvolvi para Portugal um rácio entre a renda mediana de um T1 e o rendimento mediano dos habitantes por cada concelho. Este rácio é baseado no “Carrie Bradshaw Index”, desenvolvido pela The Economist com o objetivo de medir a acessibilidade das rendas. A Figura I reporta o rácio para os 50 municípios mais populosos e a Figura II apresenta-o num mapa.
Notas: Este gráfico mostra o rácio entre a renda mediana de um T1 por município e o rendimento mediano do mesmo concelho. Estão representados os 50 maiores concelhos portugueses. Assumo que o T1 tem 55m2. Acima dos 30%, o rácio é considerado incomportável. A vermelho estão identificados municípios da Área Metropolitana de Lisboa; a azul/verde da Área Metropolitana de Porto e a amarelo o resto do país. O tamanho dos círculos indica a população do município, em milhares de pessoas. O rendimento mediano é relativo ao local de residência por pessoa passiva. Os valores contemplam apenas novas rendas contratualizadas em 2023. Fontes: INE (renda mediana por município); Autoridade Tributária e Aduaneira (rendimento mediano por município).
Trabalhadores, uni-vos! (para arrendarem casa juntos…)
Na Figura I, o traço preto vertical representa a conhecida “regra dos 30%”: a renda não deve exceder 30% do rendimento, para que se possa viver confortavelmente. Assim, municípios que ultrapassam essa linha são considerados inacessíveis para os seus residentes. Lisboa é um exemplo gritante: os lisboetas precisam de gastar mais de metade dos seus rendimentos para arrendar um T1.
A acessibilidade das rendas é um problema generalizado nas grandes cidades portuguesas. Em 2023, 28 municípios têm o rácio acima de 40%. Entre os concelhos com mais de 150 mil habitantes, apenas Guimarães apresenta rendas acessíveis. Nenhum dos 18 concelhos da Área Metropolitana de Lisboa (representados a vermelho no gráfico) oferece condições de arrendamento abaixo dos 30%. Cascais é o concelho mais inacessível em 2023 apesar de Lisboa ter rendas mais caras (14.22€/m2 e 15.22€/m2, respetivamente), porque Lisboa tem maior rendimentos (1450€ e 1600€, respetivamente).
Notas: Este mapa mostra o rácio entre a renda mediana de um T1 por município e o rendimento mediano do mesmo concelho. Assumo que o T1 tem 55m2. Em vermelho e laranja, o índice está muito acima dos 30%, que é considerado incomportável; a amarelo, está próximo dos 30%; e a verde claro e escuro, está a baixo dos 30%. A cinzento estão os municípios sem dados disponíveis sobre as rendas. O rendimento mediano é relativo ao local de residência por pessoa passiva. Os valores contemplam apenas novas rendas contratualizadas em 2023. Fontes: INE (renda mediana por município); Autoridade Tributária e Aduaneira (rendimento mediano por município).
A Evolução Recente
Para que a seta do gráfico se mova para a direita, as rendas têm de crescer mais do que os rendimentos, visto que o índice é um rácio entre eles. Por exemplo, no concelho da Moita, os rendimentos aumentaram 11% desde 2019 (nominalmente), enquanto as rendas subiram 61%. Isso significa que, para arrendar um T1 sozinho, um residente que gastaria 29% do seu rendimento em 2019, em 2023 teria de gastar 42%, o que representa um aumento enorme de 13 pontos percentuais. Na Nazaré, o concelho que mais piorou, o rácio entre a renda e o rendimento subiu de 26% para 42%. Isto porque a renda mediana da Nazaré subiu 85% em apenas 4 anos, ou seja, quase que duplicou.
De forma geral, em 2023, um português gasta em média 35.3% do seu rendimento para arrendar um T1, face aos 29.7% de 2019. Na Área Metropolitana de Lisboa, a situação agravou-se ainda mais, com um aumento médio de 8 pontos percentuais. (Estes números são as médias ponderadas pela população, i.e., atribuo maior peso a municípios maiores. Por exemplo, se o município A tem 50 mil habitantes e o município B tem 25 mil, a variação entre 2019 e 2013 do município de A terá o dobro do peso.)
Existem também diferenças entre o litoral e o interior. Em primeiro lugar, todos os concelhos costeiros pioraram, sem exceção. Mesmo fora da Costa, só 8 melhoraram (são Vila Pouca de Aguiar, Vila Nova de Foz Côa, Tábua, Ansião, Gouveia, Campo Maior, Castro Marim e Ribeira Grande). Em segundo lugar, apenas quatro concelhos com costa estão abaixo da meta dos 30%: Leiria, Mira, Mealhada e Marinha Grande.
Consequências e Políticas Públicas
Este aumento vertiginoso em apenas quatro anos terá algumas consequências menos obvias na população portuguesa. Dou dois exemplos.
Primeiro, na taxa de fertilidade, porque os jovens ficam em casa dos pais até mais tarde, o que dificulta a constituição de uma família. Em Portugal, os jovens saem de casa dos pais, em média, aos 29 anos, três anos acima da média europeia (Eurostat, 2023).
Segundo, na desigualdade salarial, porque se as pessoas com menor rendimento saem de Lisboa, onde os salários são maiores, irão ganhar ainda menos, agravando a desigualdade dos salários (Cerqueiro, Hacamo e Raposo, 2024).
As causas de fenómenos como este são sempre difíceis de quantificar. No entanto, o curto período entre 2019 e 2023 não permite que o efeito provenha de um decréscimo na oferta de habitações. Não nego que este problema exista, simplesmente não está por detrás deste aumento recente. Logo, em princípio, deve-se a pressões do lado da procura, quer seja devido ao alojamento local ou devido a migrações externas ou internas, do interior para as cidades costeiras.
Quanto às políticas públicas, visto que quer as medidas mais recentes do novo Governo de apoio à compra de habitação como as medidas de apoio às rendas do antigo Governo financiam a procura, elas acabam por contribuir para o aumento dos preços. Estas políticas são comuns em Portugal, onde, quando algo se torna mais caro (como as rendas ou os combustíveis), o Governo opta por subsidiá-lo. Ora, como no curto prazo este tipo de políticas leva apenas a pequenos aumentos na quantidade oferecida (casas a arrendar), um subsídio é quase totalmente absorvido por um aumento das rendas. A situação é perversa, no sentido em que o Estado financia os senhorios, apesar de querer ajudar os arrendatários. A incidência fiscal do subsídio recai sobre os arrendatários, mas a incidência económica sobre os senhorios.
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