Uma Esquerda Mais Liberal?
Entre os fãs de política, há discórdias sobre tudo. São poucos os temas que geram consenso. Um desses (raros) temas é a proximidade entre o Bloco de Esquerda (BE) e a Iniciativa Liberal (IL) em matéria de costumes e liberdades civis.
Por exemplo, Nuno Melo, o líder do CDS-PP, disse a seguinte frase no programa Expresso da Meia-Noite:
Eu acho que a Iniciativa Liberal, convenhamos, na agenda social, está do lado do Bloco de Esquerda. Eu diria (que) votariam da mesma forma; votam exatamente da mesma forma.
A frase não recebeu contraditório. No programa estava também João Cotrim de Figueiredo, ex-líder da Iniciativa Liberal, que confirmou: “É verdade”.
Este artigo faz um fact check a esta ideia usando as votações da Assembleia da República (AR). Será que o BE e a IL votam da mesma forma na “agenda social”?
Método: Analisar Dados do Parlamento
Para avaliar a veracidade desta ideia, recolhemos dados sobre as votações dos deputados no parlamento. Dentro desses dados, analisamos apenas votos em iniciativas afetas à “agenda social”. Este método rigoroso é possível porque a própria Assembleia da República (AR) atribui a cada proposta uma comissão parlamentar1. Neste caso, interessam-nos apenas iniciativas que dão entrada na Comissão de Liberdades Civis e Direitos Constitucionais.
Usamos estes dados para construir um indicador de proximidade de partidos. Para medir essa concordância, damos o valor “1” a um voto a favor, e “-1” a um voto contra. Depois, agregamos os deputados por partidos e calculamos a distância Euclidiana. Consideramos apenas votos a favor e votos contra, seguindo a literatura ao eliminar as abstenções (Bräuninger, Müller, e Stecker 2016). Também consideramos apenas partidos que têm pelo menos 70 votos juntos, votações não unânimes e a primeira votação sobre cada iniciativa.
Disponibilizamos mais detalhes técnicos sobre o tratamento dos dados neste documento e detalhes sobre a análise estatística neste documento, que inclui o método bootstrapping utilizado para realizar inferência e as limitações desta análise.
Resultados
A Figura II mostra a proximidade entre partidos políticos em liberdades civis desde 2019 (quando a IL entrou na AR) até ao início de 2024. Este período cobre a 14ª e 15ª legislaturas (geringonça - a sequela; maioria absoluta do PS).
A tabela lê-se: “percentagem de votos no mesmo sentido, entre os partidos \(x\) e \(y\), em propostas sobre liberdades civis nas legislaturas 14 e 15”.
Quanto à proximidade entre o BE e a IL em matéria de liberdades civis, destas matrizes tiram-se dois pontos principais:
- Entre 247 iniciativas sobre liberdades civis o BE e a IL concordaram \(72\%\) das vezes. Isto faz da IL o partido de direita mais próximo do BE na agenda social. Tecnicamente, há uma diferença estatisticamente significante entre a proximidade da IL ao BE e do BE para com todos os outros partidos de direita;
- Usando as votações reais, é um incorreto exagero dizer que a IL é mais próxima do BE na agenda social do que da direita; e vice-versa (que o BE é mais próximo da IL do que do resto da esquerda). A distância entre a IL e a direita não é estatisticamente diferente da distância entre o BE e a IL. O mesmo pode ser dito em relação à proximidade IL/BE e do BE com o resto da esquerda (excluindo o partido de governo).
Ou seja, é verdade que a IL é um outlier na direita; mas essa proximidade é exagerada até ao ponto de se afirmar que a IL é mais próxima do BE do que da direita, o que está errado.
Na Figura II conseguimos ver muitos factos interessantes. Conseguimos ver o efeito governo: o PS está bastante distante dos outros partidos porque está no governo. Em anos em que o PS faz oposição, as diferenças são atenuadas. Isto deve-se ao facto de os partidos não votarem apenas de acordo com a sua ideologia (se concordam ou não com o conteúdo) mas também por razões táticas (Bräuninger, Müller, e Stecker 2016). Um bom exemplo desse voto tático é a menor concordância entre o PS e o Chega do que entre o Chega e o BE.
Por último, lembramos que há partidos que não estão presentes em ambas as legislaturas. Logo, existe um potencial problema de seleção nas proximidades que os envolvem. Por outras palavras, não devemos comparar diretamente as proximidades destes partidos porque elas incidem em iniciativas diferentes. Por exemplo, a proximidade entre a IL e o CDS inclui temas diferentes da proximidade entre a IL e o BE.
Próximos Nuns Temas, Distantes Noutros
A IL ser mais próxima do PSD do que do BE em liberdades civis desafia a ideia que todos temos do paradigma político português. Como é possível, estarão os dados mal? Apesar desta análise quantitativa ter falhas (aqui discutidas), argumentamos que a grande razão para a surpresa é o foco dado a temas específicos.
Quando pensamos na proximidade da IL e do BE em liberdades civis focamo-nos em quatro grandes temas em que os dois partidos concordam: drogas leves, aborto, eutanásia e casamento homossexual. Estes são temas extremamente relevantes, mas não são as únicas vertentes de liberdades civis nas nossas vidas.
É também necessário pensarmos em dezenas, se não centenas, de outros temas fraturantes e igualmente importantes sobre liberdades civis. O BE e a IL discordam frequentemente sobre direitos e deveres relativos a liberdade de expressão, direitos digitais, liberdades políticas, equidade de género, papel do sistema penal, entre outros.
Em suma, o BE e a IL podem concordar que uma lésbica casada pode fumar um charro antes de fazer um aborto. No entanto, estes temas não esgotam, nem caraterizam totalmente, o conceito de liberdades civis. A próxima secção exemplifica algumas destas iniciativas.
Onde Discordam o BE e a IL?
Das dezenas de iniciativas sobre liberdades civis que geraram discórdia entre o BE e a IL, a Tabela I mostra alguns exemplos. Além disso, a Tabela I indica também as direções de voto e respetivas justificações do BE e da IL.
Iniciativa | Voto BE | Voto IL |
---|---|---|
Reformular a Carta dos Direitos Humanos na Era Digital, particularmente no conceito de desinformação | Contra; Combate à desinformação. | A Favor; Defesa da liberdade de expressão. |
Introdução do critério da paridade na composição do Tribunal Constitucional | A Favor; Leis de paridade de género são essenciais para a equidade entre homens e mulheres. | Contra; O foco deve estar na qualidade dos juízes. |
Direito à filiação partidária dos agentes de forças de segurança | Contra; Proteção do regime da presença da extrema-direita nas polícias. | A Favor; Liberdade política é um direito essencial. |
Alarga o acesso à naturalização às pessoas nascidas em território português após o dia 25 de Abril de 1974 e antes da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade | A Favor; Qualquer pessoa nascida em Portugal deve ser portuguesa (jus soli). | Contra; Ser português depende da ligação com progenitores portugueses (jus sanguinis). |
Prevê o crime publico de assédio sexual, alterando o Código Penal | A Favor; Argumentam que o assédio sexual não é totalmente abrangido pelo crime de importunação sexual. | Contra; Inapropriado o caráter público do crime de assédio sexual. |
Agravamento das penas de prisão para crimes de abuso sexual de crianças | Contra; Priorizar a punição é primitivo. O foco do sistema penal deve ser a reintegração. | A Favor; Maior dissuasão e sinal de condenação social. |
Sessão Evocativa do Dia 25 de Novembro | Contra; Valorização do PREC. | A Favor; Oposição ao PREC. |
Aumenta a protecção dos animais de companhia | Contra; Políticas de proteção animal devem equivaler animais de companhia aos restantes. | A Favor; Aumento da proteção dos animais de companhia, não os comparando com os restantes animais. |
Todos estes temas são controversos, sobre liberdades civis e importantes para os eleitores. Na primeira linha temos uma discórdia sobre liberdade de expressão; na segunda sobre equidade de género; na terceira sobre liberdade política; na quarta sobre imigração; na quinta sobre assédio sexual; na sexta sobre o papel do sistema penal; na sétima sobre o PREC; na oitava sobre direitos dos animais.
Conclusão: Não Exageremos!
A dimensão pós-materialista (Inglehart 1977) é relativamente recente no paradigma político português. Foi com a entrada do BE na AR que muitas destas questões ganharam relevo (Freire 2022), diferenciando desde cedo o partido do PCP (Pratas e Bizzarro 2022).
Contudo, nos últimos anos, o surgimento de novas forças políticas trouxe competição ao BE. Tanto o PAN (desde 2015), como o Livre ou a IL (desde 2019) atribuem peso a esta agenda, os três de uma posição liberalizante. A IL representa uma nova opção à direita, desprovida das ligações religiosas e culturais que haviam marcado este espaço político desde 1974. Como Freire (2022) descreve, a IL é “coerentemente liberal”, nas vertentes social, política e económica.
Não discordamos da literatura de Ciência Política quando esta diz que a IL compete com o BE na agenda social. Simplesmente esperamos ter demonstrado que a competição prestada pelo Livre é muito maior do que a da IL. Voltando a Nuno Melo: há um um fundo de verdade na ideia de que a IL e o BE votam da mesma forma na agenda social. Se tivermos em conta as proximidades esperadas entre direita e esquerda, os partidos estão mais juntos do que seria expectável. Existe, nesse sentido, um alinhamento claro. Dito isto, não exageremos…
A Tabela I mostra que a IL é bastante mais monotónica, valorizando quase exclusivamente liberdade (definida negativamente: a não proibição de ações). Por outro lado, o BE tem menos receio de pesar a liberdade com outros valores, como equidade ou desinformação. Apesar de concordarem muitas vezes nas respostas, partem de motivações diferentes. Nas discórdias, estas sobressaem. E ao contrário do que vem sendo assumido, revelam duas visões com diferenças profundas.
Referências
Notas de rodapé
Quando uma proposta dá entrada para a AR a mesa escolhe uma ou mais comissões. Nós selecionámos todas as que estão na comissão de liberdades civis e direitos constitucionais, mesmo que não exclusivamente.↩︎